PDM de Sintra pôs travão à construção no campo e agora quase todos querem revê-lo Avaliação de instrumento de gestão do território está em curso mas não recomenda mexidas no PDM. Solo urbano já escasseia em algumas freguesias. As rurais querem recuperar área de construção.
Quem sobe ao Palácio da Pena ou ao Castelo dos Mouros e, lá do alto, passeia o olhar sobre o concelho de Sintra, apercebe-se dos contrastes: a sul e a poente, a orla costeira com a mancha arbórea do parque natural que se estende desde Cascais; rodando para Norte, os aglomerados dispersos de casario entrecortados de campos, matas e montes suaves; e, para nascente, um largo corredor de prédios debruçados sobre a linha de comboio e o IC19. A larga maioria dos 400 mil habitantes concentra-se numa faixa urbana que vai da Portela de Sintra até Queluz, com grandes manchas populacionais como Algueirão, Mem Martins, Tapada das Mercês, Rio de Mouro, Agualva- Cacém e Massamá pelo meio.
A diversidade do segundo maior concelho do país em população não se fica pela paisagem: estende-se aos problemas que sentem as populações consoante são da zona urbana ou da rural, ainda que haja denominadores comuns como o escasso apoio social para idosos, a falta de vagas nas creches, as acessibilidades diminutas, a cobertura da rede de transportes públicos, a ausência de equipamentos desportivos e de lazer, e as dificuldades na habitação — só para citar alguns.
Esta última tem sido a pedra de toque nestas autárquicas, como já o foi nas legislativas. No caso de Sintra, a faixa costeira, a área em torno da vila património da Unesco, assim como os condomínios que foram nascendo na transição para a zona rural (de que o Belas Clube de Campo é exemplo, ou a Beloura, no sopé da serra) são de construção cara. O preço de terrenos e casas tem subido bastante também nas freguesias rurais, com valores a duplicarem em 20 anos.
De acordo com a Pordata, o preço mediano de venda das casas novas no ano passado foi de 2639 euros/m2, quando em 2021 custava menos 700 euros. Nas franjas da linha de comboio, os edifícios são antigos, muitos deles degradados, há pouco espaço verde e parte do comércio local também tem ido fechando portas com a multiplicação de grandes superfícies. Mas a queixa mantém-se: os preços são altos.
As colinas de Fitares (Rio de Mouro), Tapada das Mercês, São Marcos (Cacém), Lopas (Agualva), Massamá Norte ou Belas cresceram exponencialmente nas últimas três décadas, e o PDM – Plano Director Municipal de 1999 já não foi a tempo de corrigir alguma da construção desenfreada que fora licenciada.
Perante um território tão diferente, há quem se arrisque a falar da divisão do concelho. Ricardo Duarte, da associação de defesa do património QSintra, diz ao PÚBLICO haver uma “consciência crescente que esse cenário poderia ser uma mais-valia, com uma câmara que se dedicasse a uma área e realidade mais coesas, com uma natureza mais específica”. Ou seja, que o eixo urbano (Algueirão- Queluz) fosse separado da União das Freguesias de Sintra (Santa Maria e São Miguel, São Martinho e São Pedro) e das restantes freguesias rurais (nas áreas Norte e costeira).
Porque, alega, o Parque Natural Sintra-Cascais e a classificação da Unesco comportam realidades muito diferentes da faixa urbana e requerem uma gestão dedicada — onde se deveria incluir a criação de gabinetes dedicados às zonas históricas, como a vila mas também Colares. Esta fatia menos urbana do município mas que ocupa três quartos da área total, representa uma realidade diferente do resto do território.
Sintra está apertada pelo turismo, com os problemas de mobilidade e de preservação do edificado que lhe vão valendo “puxões de orelhas” sucessivos da Unesco (há muitos imóveis devolutos entre a Estefânia e a vila); precisa urgentemente de um “plano de restrição generalizada do tráfego no centro histórico do trânsito” à excepção de residentes e mercadorias, e de um sistema de pequenos autocarros circular, descreve Ricardo Duarte.
Ainda assim, elogia a melhoria no acesso e conservação dos monumentos com a criação da Parques de Sintra, apesar de ainda haver um “excesso de carga diária”. Porém, lamenta que “o parque natural não tenha meios suficientes para fiscalizar todo o perímetro florestal”, o que permite que haja ainda “actividade ilegal dos madeireiros na serra”, denuncia o vogal da QSintra, além das obras que se fazem para lá dos muros altos e da densa vegetação em propriedades na zona de protecção, sobre as quais a monitorização é “quase impossível”.
A Câmara de Sintra confirmou ao PÚBLICO que o plano de ordenamento do Parque Natural Sintra- Cascais aprovado em 2004 devia ter sido revisto até cinco anos depois, mas tal nunca aconteceu “apesar das profundas alterações ambientais, sociais e urbanísticas ocorridas no território” e dos seus pedidos insistentes junto do Governo.
Desviando-se para a zona rural, Ricardo Duarte aponta a”grande procura” de que esta é alvo, mas sem que receba novas infra-estruturas de acesso — nem mesmo quando se vão construindo grandes superfícies ao longo das estradas nacionais ou municipais.
Duarte recupera o desabafo que muitos habitantes: “O PDM restringiu em demasia a construção. Obviamente não defendo urbanizações no meio do campo, mas há terrenos perto da malha urbana das aldeias que estão nas famílias há anos e perderam a possibilidade de se construir neles. Há bons terrenos agrícolas onde se pode construir e outros pouco férteis onde não se pode, o que mostra a falta de conhecimento do solo.”
O fim dos solos urbanizáveis
Há dez anos, quando a Câmara Municipal de Sintra mergulhou no processo de revisão do Plano Director Municipal (PDM), que estava em vigor desde 1999, teve que fazer opções condicionadas pela lei dos solos do governo de Passos Coelho. Essa legislação acabara com o conceito de solos urbanizáveis (onde se podia construir com algumas condicionantes, por exemplo, tendo em conta a área mínima do terreno) e deixou apenas os rústicos e os urbanos. Um dos objectivos da lei de Passos, determinada pela troika, era diminuir a despesa dos municípios na construção das infra-estruturas. “Até aí, a área disponível para construção no país devido aos urbanizáveis permitia construir imóveis para albergar 40 milhões de pessoas”, salienta o ainda vereador Pedro Ventura, da CDU, com os pelouros de Intervenção das Cidades e de Ambiente e Sustentabilidade.
O resultado foi que muitos terrenos então urbanizáveis foram revertidos para rústicos, mesmo que já tivessem recebido licença para construção e esta tivesse expirado o prazo para ser usada. E nos rústicos deixou de se poder construir, o que levou proprietários a recorrem a tribunal por verem os terrenos reclassificados de urbanizáveis para rústicos, perdendo valor comercial e sendo prejudicados em investimentos e expectativas por uma alteração sobre a qual não tiveram qualquer poder. Pedro Ventura classifica de “mito urbano” a ideia de que se tenha desviado de construção da zona rural para a urbana, já que os terrenos urbanos também foram reduzidos em todas as freguesias.
Questionada pelo PÚBLICO, a Câmara de Sintra confirma que está a ser alvo de processos judiciais de proprietários que “contestam determinados aspectos do plano”, e que querem ver declarada a ilegalidade de algumas normas, incluindo a delimitação da reserva ecológica nacional e até impugnam a aprovação do PDM.
Mas não diz quantos.
“A última revisão do PDM, aprovada em 2020, implicou uma redução de 1273 hectares na área de terrenos classificados como solo urbano”, afirma a câmara, por escrito, ao PÚBLICO, que representa agora 27% do território. O concelho tem uma área total de 319.200 hectares, sendo que à data da entrada em vigor do PDM, há cinco anos, contabilizavam-se 1740 hectares de áreas livres e expectantes, e agora são 1380, o equivalente a 15,6% de todo o solo urbano, ou seja, onde ainda é permitido construir. A somar a essa disponibilidade para habitação, existem terrenos com “compromissos urbanísticos aprovados” mas ainda não construídos, e um potencial de reabilitação que andará pelos 17 mil fogos, segundo dados de 2021 dos censos, descreve o município.
Porém, de acordo com dados do Relatório sobre o Estado do Ordenamento do Território 2024 (REOT), há freguesias onde pouca mais construção se poderá aprovar: a Massamá e Monte Abraão resta um hectare de área livre e expectante; em Agualva e Mira-Sintra serão dez, em Queluz-Belas apenas 47, e em Algueirão-Mem Martins cem.
Aproveitando o termo, expectantes estão também os donos de terrenos das áreas urbanas de génese ilegal (AUGI), que em Sintra chegam às 90 – são zonas de lotes de terreno que foram divididos e vendidos para construção sem a devida licença de loteamento, sobretudo nos anos 80 e 90. A estes, “o PDM não respondeu”, lamenta Pedro Ventura, porque a lei geral impede essa legalização. São casas sem licença de habitação, pelo que não podem ser compradas com recurso ao crédito bancário. O resultado? Os descendentes vão deixando o património ao abandono.
Até dia 8 de Outubro, a Câmara de Sintra tem em consulta pública o REOT, que avalia e monitoriza a execução dos seis planos territoriais em vigor no concelho, incluindo o Plano Director Municipal (PDM). É uma “ferramenta essencial para a análise crítica e técnica do ordenamento do território, permitindo identificar oportunidades de melhoria e de adaptação às novas realidades ambientais, sociais e urbanísticas”, justifica o gabinete de Basílio Horta, que recebeu meia centena de contributos. Sobre o actual PDM, o REOT considera que “ao nível do ordenamento não se verifica a necessidade de aumentar a oferta de solo urbano, sendo dispensável, nesta fase (…) qualquer reclassificação do solo”. E admite apenas “uma alteração pontual e específica” para “alguns aperfeiçoamentos” na qualificação do solo rústico como agrícola e florestal. O que significa que a avaliação técnica vai contra a pretensão da maioria dos candidatos à presidência da Câmara de Sintra que têm feito da revisão do PDM uma das bandeiras de campanha, e também deita por terra a ambição de muitos proprietários. A decisão de revisão e sobretudo de reclassificação de solos, a vir a ser tomada, terá que ser iminentemente política.
Conjugar planos em cascata
Arquitectos e engenheiros ligados ao processo de consultoria do PDM de Sintra contactados pelo PÚBLICO falam sobre a dificuldade acrescida de conjugar uma miríade de planos ou estratégias em cascata. Que vão desde o plano nacional de ordenamento do território (OT), no topo da cadeia, descendo pelo plano regional metropolitano; a conjugação em pé de igualdade dos planos da orça costeira, parques naturais e ordenamento florestal; o PDM, e os planos de urbanização e de pormenor, unidades de execução e loteamentos. Mas se Sintra já adaptou o PDM à questão do fim dos solos urbanizáveis como manda da lei de bases do OT, haverá metade dos cerca de 300 municípios que ainda não o fez, contabiliza João Belard Correia, vice-presidente da Associação Portuguesa de Urbanistas.
Se na década de 90 houve muito planeamento estratégico — Valente de Oliveira, ministro do Planeamento, chegou a ameaçar que se não se fizessem os PDM não haveria fundos europeus —, neste século “o ordenamento do território deixou de estar na moda e é visto como um custo de contexto”, salienta Belard Correia, que é também vogal da Comissão da Especialidade de Planeamento e Ordenamento do Território da Ordem dos Engenheiros. Isso acontece em Sintra quando os projectos de construção, mesmo de moradias unifamiliares, demoram vários anos para serem aprovados na Câmara de Sintra, lembra. E o ordenamento do território começa a ser sentido como um “desordenamento da vida dos habitantes e proprietários”.
O engenheiro do território defende que o caminho é o que a Câmara de Sintra tem seguido: basear o ordenamento capilar em planos de urbanização das várias áreas do município. “Em alguns sítios não faz sentido termos torres, mas apenas uma densificação da construção. Temos, no entanto, que olhar a médio prazo: construiu-se muito em certos locais e daqui a uns anos teremos muita área para reabilitar”, avisa. A quem defende uma ocupação do território mais dispersa na zona rural, Belard Correia admite que “se não se viver por todo o concelho há zonas que ficam ao abandono, mais vulneráveis a incêndios, por exemplo”, porém, ao mesmo tempo lembra que isso tem um preço nas contas do município: implica construção e manutenção de mais infra-estruturas, maior rede de transporte, mais serviços, despesa com recolha do lixo.
A médio prazo, o desafio no concelho de Sintra será “preencher os vazios urbanos com construção de qualidade”, em especial densificando junto dos nós de transportes, reconstruir os devolutos (a câmara terá que criar programas de incentivo), apostar na criação de espaços verdes e equipamentos colectivos — só existem três piscinas municipais e nenhum verdadeiro complexo desportivo com múltiplas valências no concelho. O engenheiro do território avisa que “as medidas não podem ser avulsas”, mas têm que “manter a coerência das áreas urbanas” para de poder estudar soluções de mobilidade como metro, comboio ou o brt (autocarros em via dedicado). Aqui, Sintra está em falta: o plano de mobilidade urbana sustentável ainda não está em vigor.
“A opção por ter grandes aglomerados depende dos modelos de ordenamento do território. Podemos concordar ou não com eles. O fundamental, qualquer que seja a sua escala, é desenhá-los de forma integrada com transportes”, aponta ainda o especialista em território. Com a dimensão dos centros urbanos do concelho de Sintra, até se poderia aplicar aqui a teoria da “cidade dos 15 minutos”, em que os habitantes podem fazer toda a sua vida num espaço em que estão a 15 minutos de tudo o que precisam. Belard Correia não quer ir tão longe. Financeiramente é extremamente difícil e, no limite, poderia levar as pessoas “a circunscreverem-se a essa área e não conhecerem mais nada”.
“Os tempos do planeamento não são compatíveis com os tempos acelerados em que vivemos”, realça João Belard Correia. Estes processos de revisão implicam participação pública, análise e integração de contributos (muitos deles de interesses opostos), vários patamares de nova análise, aprovação e moratórias para entrada em vigor. “E quando um proprietário entrega um projecto na câmara pretende urgência no tratamento. É impossível.”
Público
28 de Setembro, 2025
Maria Lopes






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